O que faz um restaurante ganhar uma estrela Michelin

O que faz um restaurante ganhar uma estrela Michelin

Criado humildemente em 1900, o Guia Michelin hoje é cercado de mistério. Um número não divulgado de inspetores analisa mais de 40 mil restaurantes, em mais de 30 países. Placa Michelin
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Deixando de lado o romance e o mistério sobre o destino dos seus protagonistas, o ponto mais interessante do roteiro da nova temporada da série da Netflix “Emily em Paris” talvez seja o sonho de Gabriel de conseguir uma cobiçada estrela Michelin para o seu restaurante l’Esprit de Gigi.
Do filme “O Menu” à série “O Urso” ambos de 2022, diversos chefs de cozinha da ficção vêm buscando esta ilustre distinção nos últimos tempos.
“Emily em Paris” pode não compreender muito bem a capital da França, mas a série mostra o sigilo e a solenidade das estrelas Michelin com bastante precisão.
“Mesmo para nós, o Guia Michelin é um tanto obscuro”, afirma Julia Sedefdjian – a mais jovem chef da França a receber uma estrela Michelin, aos 21 anos. “Não é como se tivéssemos uma grade de avaliação à nossa frente.”
Mas, considerando o silêncio e o anonimato dos inspetores do Guia, talvez as melhores pessoas para fornecer uma noção do que realmente é preciso para ganhar uma estrela Michelin sejam os próprios chefs.
O Guia Michelin surgiu humildemente em 1900, como um guia gratuito para os clientes dos pneus Michelin. Ele indicava postos de gasolina, hotéis e restaurantes.
A hierarquia das três estrelas surgiu apenas em 1931. Uma estrela indicava estabelecimentos que, segundo a publicação, valiam a pena fazer uma parada. Duas estrelas recomendavam desviar do caminho até eles e três estrelas significavam que eles valiam toda uma viagem.
O Guia atual é cercado de mistério. Um número não divulgado de inspetores analisa mais de 40 mil restaurantes, em mais de 30 países.
Somente a França tem 639 restaurantes com estrelas Michelin. Destes, 75 têm duas estrelas e apenas 30 ostentam as três estrelas.
Julia Sedefdjian foi a chef mais jovem a receber uma estrela Michelin na França, com apenas 21 anos
Baieta
Os nebulosos critérios de concessão das estrelas aos restaurantes são mais claros para o chef Maxime Bouttier. Ele trabalhou por 15 anos em cozinhas estreladas de toda a França, além do frugal Les 110 de Taillevant, em Londres.
“Sei como você pode conseguir uma estrela”, disse o chef. Ele ganhou a primeira estrela pouco depois de abrir seu próprio restaurante em Paris, o Géosmine, em março de 2024.
Ele menciona alguns “códigos”, como toalhas de mesa brancas e música suave de piano ao fundo. São itens que alguns restaurantes procuram atender.
Quando Sedefdjian abriu, também em Paris, seu restaurante estrelado Baieta, em 2018, a chef investiu de propósito em belas louças e um estoque de vinhos compatível na adega. Ela chegou a abrir o restaurante no mesmo lugar onde, antes, ficava o restaurante Itinéraires, que recebeu a estrela Michelin.
Mas a jornada de Sedefdjian em busca do estrelato começou muito antes, quando ela tinha apenas 14 anos. Ela cursava a escola de culinária e trabalhava como estagiária no restaurante fino l’Aphrodite, quando ele ganhou sua primeira estrela.
“Eu vi o que era ter um chef que havia esperado pela sua estrela por anos, até finalmente conseguir”, relembra ela. “É algo mágico. Eu me lembro como se fosse ontem e a estrela nem era minha.”
Sigilo total
Especialistas do setor de restaurantes podem ter suspeitado da revelação de que a “inspetora” Marianne era uma impostora, na quarta temporada de “Emily em Paris”. Afinal, quando o assunto é uma inspeção do Michelin, os chefs são sempre mantidos no escuro.
“Nós nunca sabemos da visita dos inspetores”, afirma Sedefdjian. “Quando eles se apresentam, isso só ocorre depois que eles comeram. E frequentemente – muito frequentemente – eles não se apresentam.”
Mas existem algumas indicações retratadas quase à perfeição no filme “Pegando Fogo” (2015). Nele, o gerente do restaurante comenta com o chef alguns comportamentos estranhos. Ele fala de dois clientes, um deles pedindo o menu degustação e o outro, à la carte. Eles também pediram uma meia garrafa de vinho e – o mais importante – colocaram um garfo no chão.
“Nós costumávamos dizer que eles colocavam talheres no chão para ver se o garçom os retirava rapidamente”, conta Sedefdjian.
A série ‘O Urso’ é uma das várias produções que mencionaram o secreto processo de avaliação de restaurantes do Guia Michelin nos últimos anos
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Os fãs de “O Urso” suspeitam que a série brincou com a mesma ideia na terceira temporada, quando Richie observa um garfo no salão de jantar.
Mas, no Baieta, não houve garfo. Na verdade, se aquele cliente solitário na casa dos 40 anos não tivesse se apresentado após o jantar, Sedefdjian não teria ficado sabendo da sua visita.
“Você sempre acha que será uma pessoa mais idosa com um caderninho de anotações”, ela conta.
Depois da inspeção, a maioria dos chefs toma conhecimento da situação das suas estrelas em uma cerimônia rodeada de publicidade. Mas, para os novos restaurantes, Sedefdjian conta que “alguém do Guia liga para informar você”.
A chef descreve sua expectativa à medida que se aproximava a data da cerimônia: “Eu comecei a dizer para mim mesma: ‘Não é possível. Eles não vão ligar. Eles nunca vão ligar.'”
Até que, um dia antes da cerimônia, um número desconhecido surgiu no seu telefone.
“Meu coração começou a acelerar”, ela conta. “Era alguém do Guia, ligando para dizer: ‘Quero informar você que a sua estrela irá brilhar novamente.'”
Novos padrões
Bouttier também começou seu caminho rumo ao estrelato aos 14 anos.
Quando ele declarou seu desejo de cozinhar profissionalmente, sua mãe o pressionou para que frequentasse a escola de hotelaria.
“É muita teoria, sentado em uma cadeira”, ele conta. “Se eu queria ficar na cozinha, era porque eu estava cansado de ficar na cadeira!”
Eles então chegaram a um acordo. Bouttier iria procurar um estágio em um restaurante estrelado. Quinze anos depois, ele abriu o Géosmine, sabendo que queria uma estrela – mas no seu estilo.
“Não temos toalhas de mesa”, afirma ele. “Nossos garçons calçam botas. Nossa trilha sonora é de raps dos anos 80. Nada parecido com que deveríamos ter feito para conseguir uma estrela.”
Ainda assim, Bouttier ganhou uma estrela menos de um ano depois da abertura do restaurante, em abril de 2023.
No restaurante Géosmine, do chefe Bouttier, toca rap dos anos 80 e não há toalhas na mesa
Laurent Dupont
Sua experiência não é um caso único, segundo a chef formada, instrutora de culinária e guia gastronômica Allison Zinder.
“O que observei nos últimos 10 anos é um enfoque muito maior nos ingredientes, nas técnicas e no que está no prato do que nos pratos em si”, segundo ela. “Ficou muito mais simplificado. É menos questão de toalhas de mesa.”
No badalado 11º arrondissement (bairro) de Paris, Bouttier segue os passos dos seus vizinhos pioneiros – como Bertrand Grébaut, dono do restaurante Septime. Ele ganhou sua primeira estrela em 2014, com garçons de tênis e aventais azuis.
Outro exemplo é o chef Iñaki Aizpitarte. Sua estrela de 2018 no restaurante Le Chateaubriand foi conquistada sem nenhuma toalha de mesa à vista.
Os pratos evoluíram para além do que Bouttier classificava de “demonstração de técnica”. Neles, muitas vezes, “você nem mesmo reconhecia o ingrediente original”.
Em vez disso, as mesas atualmente com estrelas Michelin oferecem “pratos muito mais rústicos, com muito mais cozinha por trás deles”, segundo o chef.
“Muitos molhos, muitas preparações preliminares, mas, no prato, o visual parece muito mais simples. Muito mais acessível.”
Reviravolta
Para os donos de restaurantes, ganhar uma estrela Michelin pode virar a mesa da noite para o dia.
O l’Aphrodite fechou temporariamente para transformar sua cozinha corredor em uma grand cuisine. Já Maxime Bouttier simplificou seus pratos em um único menu de preço fixo. Mas as mudanças mais palpáveis estavam além do seu controle.
“Temos agora uma clientela estrelada, que é muito mais barulhenta”, segundo ele. O chef relembra, por exemplo, clientes que ficaram horrorizados quando souberam que não poderiam trazer “cães do tamanho de vacas” para jantar.
Para Julia Sedefdjian, a principal mudança é de mentalidade: “ela traz um tipo diferente de disciplina”.
“O Urso e Pegando Fogo” mostram os possíveis prejuízos deste tipo de ambiente para a saúde mental e o estilo de vida.
“Você precisa fazer muitos – muitos – sacrifícios”, afirma Bouttier. Ele reconheceu que sua própria natureza meticulosa o transformou em uma pessoa com quem “não é fácil trabalhar”.
Nos últimos anos, os chefes têm notado um foco maior nos ingredientes e técnicas do que na atmosfera
Baieta
Nos últimos anos, os chefs observaram maior atenção aos ingredientes e técnicas do que à atmosfera dos restaurantes na avaliação para o Guia Michelin.
“Tenho apenas 32 anos, mas meu estilo de administração é da escola antiga”, ele conta. “Se você entra às oito horas, você está na cozinha às oito horas. Se você quiser tomar café e se trocar, você chega às 7h40.”
A pressão só é superada pelo próximo objetivo de Bouttier: a segunda estrela Michelin.
Para chegar lá, ele acredita que irá precisar contratar mais funcionários e renovar sua cozinha. Ele vai reduzir o número de clientes de 30 para 22, o que significa aumento de preços. Mas vai valer a pena.
“Todos os lugares onde me diverti enquanto jantava, na minha vida, eram lugares com duas estrelas”, afirma Bouttier. E ele destaca que, como chef, duas estrelas ainda deixam espaço para crescimento. Mas, “se você tiver três estrelas, poderá perder todas”.
O contraponto à alegria de ganhar uma estrela Michelin é a dor de perder uma delas.
A possível perda da sua terceira estrela Michelin foi mencionada como uma possível motivação para a morte do chef Bernard Loiseau por suicídio, em 2003. E, depois de perder sua terceira estrela Michelin em 2019, o chef Marc Veyrat exigiu sua exclusão completa do Guia.
Por isso, talvez não seja surpresa observar que o chef Gabriel de “Emily em Paris” (atenção: spoiler!) fica tão aliviado ao saber, na quarta temporada, que ele não ganhou sua estrela, afinal.
Chefs dizem que ganhar uma estrela Michelin pode trazer muita pressão
Baieta
Os chefs destacam que a conquista de uma estrela Michelin pode ser fruto de uma grande dose de pressão.
“Sempre fui motivada [pela pressão]”, afirma Sedefdjian. “Mas posso entender por que existem chefs por aí que dizem que os obstáculos são grandes demais.”
Para Bouttier, o segredo é manter tudo em perspectiva. Para ela, os chefs que ficam cegos pelas estrelas “são pessoas que esquecem sua identidade. Eles irão cozinhar por anos apenas para ter aquela estrela, esquecendo todo o resto.”
Mas os dois jovens chefs mantêm sua integridade culinária em primeiro lugar.
“A estrela é uma recompensa pela disciplina e pela qualidade do trabalho e isto é o que importa, segundo Bouttier. “É o caminho que leva você até a estrela, não a estrela em si.”
“Nós cozinhamos como queremos cozinhar”, acrescenta Sedefdjian. “Temos que gostar disso, nossos clientes têm que gostar disso. E, se o Michelin gostar, melhor ainda.”
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.
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